quinta-feira, 19 de julho de 2012

Rita de Cássia

- Rita de Cássia
- Isso não é nome de puta neném.

Pernas finas,quase gambitos,marcadas por horrorosas cicatrizes de surras,antigas e novas. Corpo raquítico e barriga saliente,caindo para fora do shorts surrado, rasgado e sujo. Dentes amarelentos,quase cor de bolor e hálito rescendendo a cigarros baratos. Era a puta mais judiada do puteiro mais derrubado da cidade.
E era tudo que o meu dinheiro podia pagar,além da conta das duas cervejas que já tinha tomado.

- Faço questão.

A puta dizia isso com toda a dignidade que lhe restava depois de 35 anos perambulando de zona em zona. De pau em pau, de caralho em caralho.
Não era muita, a dignidade digo, apenas o suficiente para as palavras caírem pesadas no chão,envoltas em uma nuvem de cachaça de alambique,que a desgraçada tomava de canudinho.

- Questão absoluta. Rita de Cássia. É um nome bonito, a única beleza que me sobrou nessa vida de merda.

Enchia a boca e falava de novo.

- Vida de merda.

Tive que concordar com ela. Vida de merda.
Falava de beleza e de merda com o mesmo entusiamo,entre goles da cachaça e clientes lhe passando a mão nas ancas murchas. Fazia a apologia da beleza no meio da fealdade, da desgraça, da desilusão de putas e clientes, da cafetina e dos garçons. Fazia a apologia da beleza e estragava o fígado com a cana vagabunda.
E recitava poesias, com a boca frouxa, os lábios encarnados quase caindo da cara:

Beijar-te a fronte linda 
Beijar-te o aspecto altivo 
Beijar-te a tez morena 
Beijar-te o rir lascivo 

Beijar o ar que aspiras 
Beijar o pó que pisas 
Beijar a voz que soltas 
Beijar a luz que visas 

Sentir teus modos frios, 
Sentir tua apatia, 
Sentir até repúdio, 
Sentir essa ironia, 

Sentir que me resguardas, 
Sentir que me arreceias, 
Sentir que me repugnas, 
Sentir que até me odeias, 

Eis a descrença e a crença, 
Eis o absinto e a flor, 
Eis o amor e o ódio, 
Eis o prazer e a dor! 

Eis o estertor de morte, 
Eis o martírio eterno, 
Eis o ranger dos dentes, 
Eis o penar do inferno!  *



- Inferno. Entendeu bem? Inferno filho da puta. Inferno.

Poesias de uma época quase tão remota quanto ela mesma. Até que era bonito aquilo. Uma puta recitando poesias era tudo de melhor que poderia acontecer aqui. Destoava,mas era bonito.

- Desce mais uma.

Mais uma para tomar coragem e levar a puta Rita de Cássia para o quarto. Mais uma para encarar o cheiro rançoso da xoxota que dava para sentir há dois metros de distância.

- Vou te chamar de Vanessa. Rita de Cássia não é nome de puta neném.

(*) Martírio - Junqueira Freire.



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